31.10.06

Negociação em Aduuhr

Intertraktado en Aduuhr

A enorme esfera branca amarelada ocupando grande parte do horizonte, acompanhada de uma menor, acinzentada, no vasto fundo negro, indicavam que aquela doca era sem dúvida uma das melhores da base. A esfera maior era Aduuhr; a menor, uma de suas duas luas, que eu não consegui até agora lembrar o nome.

Sabe, Aduuhr, em aduuhrano, significa “areia”. Isso porque, a maior parte da superfície seca do planeta é desértica. Desta forma, quase tudo o que a gente vê quando olha para ele é um branco amarelado, tão claro que, quando saímos da Oportunidade (esse é o nome da nossa nave), ofuscou os meus olhos e os do oficial que tinha ficado encarregado da minha segurança. O planeta reflete tanta luz que na doca onde a gente tinha estacionado não tinha nem luz artificial. Dá para imaginar que, do mesmo jeito que Yuri Gagarin disse “a Terra é azul”, seu correspondente aduuhrano disse “Aduuhr é branca amarelada”, isso, claro, se ele não tiver dito algo como “caramba, como meus olhos dóem!”.

Enfim, Aduuhr tem areia a dar com pau. Claro, como todo planeta, tem gelo nos pólos, florestinhas e tal, mas tem muita, muita areia. Nem oceanos o planeta tem direito, um ali, outro aqui, já que é tão perto do sol deles que a água vira vapor fácil, fácil, o que me deixou bastante grato por eles terem optado por realizar o encontro numa das luas. Enfim, com isso, é muito justo os nativos chamarem seu mundo de “Areia”, o que me fez pensar se a Terra, com seus dois terços de água na superfície, não devia se chamar “Água” ao invés de Terra. Claro, só pensei nisso porque esse era o motivo pelo qual eu estava lá.

Na aula de xenologia, na pós-graduação, a gente aprendeu que há três coisas importantes a se saber sobre os aduuhranos: um, eles fedem; dois, eles são a raça extraterrestre inteligente mais resistente que a gente conhece (era de se esperar isso de camelos bípedes); e três, e, neste caso, mais importante, eles são excelentes negociadores, daqueles que sempre te deixam com a pulga atrás da orelha ou com a impressão de que saiu perdendo. Freqüentemente, com as duas. E foi por isso que eu fui escolhido pessoalmente pelo onipresidente para este trabalho. Afinal, eu sou Miguel Cassini, o melhor negociador do sistema solar.

Enquanto o comitê de recepção aduuhrano escoltava a mim e ao oficial até nossos alojamentos, e depois, durante toda noite (figurativamente falando, claro... nem vou me alongar falando que “dia” e “noite” são conceitos totalmente relativos quando se está fora de casa), só conseguia pensar uma coisa: “não o Caahriin, por favor, não o Caahriin”. Dia seguinte, na sala de conferência, é lógico, Caahriin estava sentado à minha frente.

Abuuhud Caahriin é o melhor negociador aduuhrano; os aduuhranos são os melhores negociadores deste setor da galáxia. Logo... bom, basta dizer que uma vez ele fez um sshzaasita sair chorando da sala de negociações após fazê-lo trocar um comboio inteiro de espaçonaves por um ovo perdido. Você acha pouco? Você já viu um sshzaasita chorar? Sabe por quê? Porque o organismo deles não produz lágrimas. Eu estava lá, e vi tudinho.

Bom, então estava eu lá, sentadinho, encarando os negros olhos de Caahriin, ele encarando os meus. Sua pelagem estava já curta e acinzentada, sua pele já enrugada, mas o aduuhrano continuava parecendo uma rocha impenetrável. Ah, e ele fedia.

- Água suficiente para dez anos, em troca de carbo-hássio para cinco anos. É um acordo excelente, não há como negar.

- Seria, se dez anos em Aduuhr não equivalessem a quatro anos terrestres. - (ele entendeu a minha pegadinha) - Por favor, Cassini, não sou idiota. E antes de você me falar sobre relatividade e mais um monte de besteira para tentar me enrolar, deixa só eu te esclarecer dois pontos: o primeiro é que nós somos a única fonte de carbo-hássio em abundância no universo – (olha o exagero... ele devia ter dito “dentre as raças com as quais vocês têm contato amistoso”) - e o segundo é que vocês não são a única fonte de água. Nada impede que a gente comece a comprar água dos bloughs.

- A não ser o fato de eles serem xenófobos belicosos em guerra com metade da galáxia – (e eu descobri a pegadinha dele) – O que você sugere?

- Você está com sorte hoje, Cassini, temos uma proposta que você vai descobrir ser irrecusável. Cinco anos terrestres de combustível em troca de apenas dois anos terrestres de água... e vocês nos concedem a exploração de metade do cinturão de asteróides entre o terceiro e o quarto planeta de Alfa do Centauro.

- O quê?

- É isso mesmo. Te dou até amanhã para pensar.

Parecia, realmente, tentador, como trocar ouro por palha. Por via das dúvidas, falei com o planetólogo da tripulação, que confirmou minha suspeita de que os asteróides não passavam de “uma porção de rocha fria e sem graça”. Por via das dúvidas, procurei mais quatro planetólogos de outras naves próximas, e todos eles disseram o mesmo. Era uma pechincha. No dia seguinte, então, fechei o acordo.

Tudo lindo, tudo mais que lindo. Conseguimos o combustível, gastamos pouco da nossa reserva de água, e ainda podíamos jantar ouvindo a linda (ainda que estranha) música aduuhrana. Caahriin, de bom humor como nunca havia visto antes, ainda me deu de presente uns dez quilos de uma iguaria típica muito apreciada por eles (fiquei sem graça de falar que odiava aquilo. Afinal, um presente desses é que nem um cubano: ainda que você não fume, você não recusa). Mas lembram do que eu tinha falado que aprendi sobre os aduuhranos na aula de xenologia? A resistência física, o fedor e a pulga atrás da orelha? Bom, a primeira eu não ia ter como comprovar naquela viagem, mas a segunda era evidente. Bem como a terceira.

Saímos de lá com um acordo fechado, um monte de combustível a preço de banana e uma baita pulga do tamanho de um elefante na parte de trás da orelha. Trocamos um monte do precioso carbo-hássio pela metade de um monte de pedras flutuando num sistema planetário vizinho. Bastou uma ligação para o onipresidente. Ele não entendeu nada, mas por via das dúvidas aumentou em duzentos por cento a verba destinada à exploração da outra metade do monte de pedras.

***

Günna, de boca cheia, ria com gosto.

- Muito boa, Miguel! E ainda nos conseguiu um belo churrasco de... como é mesmo o nome desse troço aqui?

- Não sei... não sei nem como vocês conseguem comer isso, é nojento!

- Você não sabe o que diz, meu caro! Sabe, nós jamais deveríamos ter feito aquilo com vocês lá em Sírio. Fico feliz que tenha nos procurado e oferecido este jantar de reconciliação. Fomos tão estúpidos.

- Não tem problema, meu velho, isso foi há muito tempo. Águas passadas...

- Não fazem verão, é isso aí! Mas olha, voltando ao assunto da comida... você tem certeza de que não quer, está muito boa mesmo!

- Já disse, Günna, não como esse troço aí. É nojento.

- Nojento? Você já experimentou para saber?

- Claro que não. Isso aí é ótimo para os aduuhranos, mas é tóxico para nós, humanos. Adeus, Günna.