11.6.07

Eu Sou

Mi Estas

Cambaleante, um pé, o outro, uma mão na parede. Números, números um e zero andando em seqüência na frente dos seus olhos, difícil de pensar. Concentrar. Computador, precisará traduzir os zeros e uns em seqüência que manuscreveu a noite toda e que ainda superpovoam sua cabeça. Um pé. Outro. O corredor é longo imenso, embora se lembre dele como curto. Difícil caminhar. As paredes de metal da Oportunidade não oferecem apoio. Um pé. O outro, não. Joelhos no chão, precisa se levantar, precisa continuar. Queda sobre a cadeira. Difícil falar, difícil pedir.

- Computador...

- Bom dia, doutor.

- Análise...

Abrir leitor, inserir dados. Tarefa simples para qualquer criança, mas heróica quando tudo que está na sua mente é 1 1 0 1 0 0 1 0 1 0 1 0 0 0 1 0 1 1 0 0 1 0 1 0 1 1 1 infinitos. Um som agudo, ouvidos dóem, olhos fecham. E então o silêncio, a clareza. Finalmente o dr. Silveira era ele mesmo nesta manhã.

Sem ruído algum, uma folha de papel foi emitida às mãos do cientista. Estranho, uma vez que não foi acompanhada de um cordial "sua análise está concluída, doutor", o que obviamente impedia que o doutor respondesse com um cordial, ainda que desnecessário, "obrigado".

Inconscientemente trêmulas, as mãos de Gustavo seguravam o papel diante de si. "Curioso, porque estou sentindo isso?" A mente de um cientista é algo realmente interessante, uma vez que, dentre todos os seres do universo, são os únicos cujo cérebro tem a capacidade de qestionar a razão de qualquer coisa, desde a existência de uma divindade superior até uma coceira no dedinho do pé esquerdo.

E então ele leu.


Eu sou o medo
Que vós tendes daquilo que escapa de vossa limitada percepção;
Eu sou a incerteza
Que vós sentis ao deparar-vos com as possibilidades infinitas do futuro;
Eu sou a desconfiança
Que vos torna incapazes de crer em teus pares e vos pondes equivocadamente acima de teus semelhantes;
Eu sou a desavença
Germinando lentamente em vossos cérebros incompatíveis;
Eu sou a solidão
Que vos assombra por serdes incapazes de encarar o infinito sem tentar vos comparar a ele;
Eu sou o silêncio
Que vos toma e torna vosso conhecimento inacessível e limitado;
Eu sou a dor
Espalhando-se inexoravelmente em vossos corpos e em vossas mentes;
Eu sou a cegueira
Que impondes a vós próprios quando impondes parâmetros mínimos a uma verdade cósmica;
Eu sou a dúvida;
Eu sou a corrupção;
Eu sou a mentira;
Eu sou a morte
E eu sou vós.


Contemplou o texto por um tempo, depois releu. Um poema. Um poema de morte. Uma mensagem, um aviso. Uma forma de comunicação de uma inteligência desconhecida. E hostil. Uma ameaça.

Não se desesperou, se alarmou e sequer seu coração deu-se ao trabalho de acelerar seus batimentos. Mas seu cérebro respondeu.

Eu sou o medo
Que vós tendes daquilo que escapa de vossa limitada percepção;

"Eu não temo, eu busco. Se há algo que me escapa, eu não descanso até entendê-lo; se minha percepção é limitada, eu crio os meios para expandi-la."

Eu sou a incerteza
Que vós sentis ao deparar-vos com as possibilidades infinitas do futuro;

"Não hé incerteza, há a ignorância. E minha existência dedica-se a erradicá-la. As possibilidaes do futuro são tão infinitas quanto a minha capacidade de reduzi-las."

Eu sou a desconfiança
Que vos torna incapazes de crer em teus pares e vos pondes equivocadamente acima de teus semelhantes;

"Desconfiança só afeta aqueles incapazes de encontrar o denominador comum em um ponto de discórdia. Ninguém está acima de ninguém, todos evoluímos e temos nosso lugar no universo."

Eu sou a desavença
Germinando lentamente em vossos cérebros incompatíveis;

"Nossas diferenças nos fortalecem, um cérebro complementa o outro. Somos individualmente limitados, mas unidos nossas realizações são incomensuráveis."

Eu sou a solidão
Que vos assombra por serdes incapazes de encarar o infinito sem tentar vos comparar a ele;

"Sim, comparo-me ao infinito, mas não me sinto insignificante. Apenas percebo que ainda há muito a ser descoberto, o quão imensa deverá ser nossa criatividade para preencher tanto espaço."

Eu sou o silêncio
Que vos toma e torna vosso conhecimento inacessível e limitado;

"Então eu sou a voz, e todos, inclusive eu, seremos ouvidos."

Eu sou a dor
Espalhando-se inexoravelmente em vossos corpos e em vossas mentes;

"Aqueles que sentem dor são os únicos capazes de realmente valorizar sua existência. É isso que torna as criaturas vivas mais perfeitas que qualquer máquina."

Eu sou a cegueira
Que impondes a vós próprios quando impondes parâmetros mínimos a uma verdade cósmica;

"Parâmetros existem para serem destruídos. A verdade só é verdade até que seja desvendada como mais uma mentira. Se não a conheço, certamente lutarei para conhecê-la."

Eu sou a dúvida;

"Eu sou a descoberta."

Eu sou a corrupção;

"Não se vende a própria vida."

Eu sou a mentira;

"Então sois efêmero."

Eu sou a morte

"Eu sou meus filhos, meus netos, bisnetos... sou infinito!"

E eu sou vós.

"Eu sou a inteligência da vida. Sou a única coisa capaz de vos deter."




Inspirado pela música "Cosmic Fusion", do Ayreon, parte da ópera metal "Into the Electric Castle"

3.4.07

Estranhos Estranhos

Stranga Nekonatoj

Se você acorda pela manhã e, quando olha para o espelho, não vê a si próprio, o que faz? O que pensa? Exatamente. Era isso que o Capitão Gael Wülf sentia naquela manhã. O reflexo que olhava de volta inquisitivamente pouco lembrava sua própria face. Um fantasma, um zumbi, era isso que via. Um olhar morto, um rosto cadavérico, pálido. Dias sem dormir, e quando dormia era certeza de pesadelo. O capitão da Oportunidade aguardara ansiosamente pela chegada da Onda, o raro fenômeno cósmico, agora iminente, mas não queria que fosse daquele jeito. Não com tanta gente, não com uma crise de alienígenas nunca antes vistos e potencialmente hostis a ser resolvida. Wülf agora entendia. A Onda era como uma droga, que desperta sua consciência para a multiplicidade, infinitude e infimidade do universo, mas, ao contrário dos químicos, ela não destruía seu corpo, ela o fortalecia. Mas ela viciava.

- Capitão – chamava a imediata Torres pelo intercomuncador. – é melhor o senhor subir à ponte.

Caminhando passos lentos e arrastados de quem acabou de acordar, ainda que a última vez que tenha de fato acordado tinha sido já há algum tempo, o capitão passava pelos corredores de sua nave, sua casa, como Geni entregava-se ao homem do zepelim na antiga parábola. A altivez de herói de guerra havia sumido, o respeito que era de se esperar de quem já havia executado tantos feitos grandiosos não mais era inspirado em ninguém. Pena. Era isso que Gael despertava nas pessoas naquelas horas.

A porta abriu, silenciosa, enquanto o capitão tentava se recompor para encontrar sua tripulação. Os olhos de seus oficiais o perseguiam, mas ele não podia fugir. Ele era o capitão da Oportunidade, oras.

- Bom dia, imediata, o que tem pra mim?

- Bom dia, senhor. Os sensores detectaram múltiplos buracos de minhoca do lado oposto do cinturão de asteróides.

- Quando isso?

- Acabaram de chegar, senhor. Até o momento contamos dezesseis naves grandes, possivelmente naves-mãe. Tentamos entrar em contato, mas a estrela tá bloqueando o sinal.

- Vamos manobrar pra conseguirmos sinal. Se tem dezesseis naves, devem ser de alguma raça com quatro dedos em cada mão. Temos alguma informação sobre alguém que teria o que fazer pra essas bandas?

- Mehdikhani? – a imediata virou-se para um dos oficiais, um rapaz moreno que não tirava os olhos de um monitor.

- Um momento, senhora... aqui. Parece que fechamos um acordo com Aduuhr há algumas semanas que dá a eles o direito de explorar o lado de lá do cinturão.

- Ah, que ótimo! Mandam minha nave para um sistema e nem me avisam que não tenho jurisdição sobre ele todo!

O capitão estava transtornado. Controlando-se, mas transtornado. Não era nem o problema de de repente ter que lidar com uma outra raça sem estar sabendo. Isso, Wülf já havia feito milhares de vezes antes. O problema era a Onda. De novo, a Onda, a maior resposta e fonte de perguntas de sua vida. Antes que fosse capaz de concluir sua odiosa linha de pensamento, o jovem Mehdikhani interrompeu:

- Tem mais, senhor. Quem fechou o acordo foi nosso hóspede, o senhor Cassini.

O Capitão suspirou, coçou os olhos e resmungou:

- Mandem o senhor Cassini subir aqui.

***

Em comparação ao sério silêncio da ponte, a chegada de Miguel Cassini, quarenta e cinco minutos depois que fora chamado, parecia uma tempestade. Não que fosse particularmente barulhento, mas sim porque a tripulação estava atipicamente quieta.

- Quem morreu?

- Cassini, por que tem aduuhranos do outro lado do cinturão de asteróides? - logo se via que senso de humor não era o forte do Capitão.

- Pois é, não te contaram? Eles trocaram cinco anos de combustível pelos direitos de explorar aquele lado do cinturão, vai entender.

Dentre todos os presentes, Gael Wülf era o único que entendia. E não gostava nem um pouco do rumo que aquela história estava tomando.

- Vem cá, Cassini. O almirante da frota deles tá na linha.

O capitão levou seu colega negociador até um dos terminais de comunicação no sobrepiso.

- Na tela! - ordenou, fazendo com que o grande visor deixasse de exibir o espaço fora da Oportunidade e passasse a mostrar uma criatura de longos pêlos marrom-acinzentados, lábios protuberantes à frente de um longo focinho, trajando vestes soltas, porém ricamente detalhadas. O líder aduuhrano parecia ainda mais áspero do que era de se esperar de um dos seus. E então Miguel o abordou. Em aduuhrano, claro.

- Glukta viiz, hamaak je tuun. Hanja-nii guk, mih-ti ne cluuhz.

O almirante riu do outro lado da linha.

Observando sem entender, Wülf mostrava-se tenso. Afinal, se Cassini escolhesse dialogar com o alienígena em esperanto ao invés de aduuhrano, o sistema de tradução funcionaria e as palavras do almirante seriam gentilmente legendadas a todos que quisessem lê-las.

O diálogo prosseguiu por alguns minutos, até que algum dos dois de despediu e o outro desligou.

- O que você tá escondendo, Cassini?

- O quê?

- Porque não conversou com ele em esperanto pra todo mundo entender?

- São pequenos detalhes da diplomacia que eu não espero que seja capaz de apreciar, Capitão. E então, quer saber o que a gente conversou?

O diplomata achou que o resmungo de Wülf queria dizer "sim", e então explicou:

- Primeiro, o Almirante Haashtah perguntou se estávamos a par da presença destes "desconhecidos", e se a gente sabia alguma coisa sobre eles. Disse que sim, estávamos a par de sua chegada iminente, mas não conseguimos descobrir nada sobre eles. Ele me falou algumas coisas técnicas que depois traduzirei com calma para perguntar para alguém que tenha algum conhecimento sobre rebimboca da parafuseta, e então ele disse que uma das filhas dele está para completar dezenove anos e que ele gostaria que esse assunto fosse resolvido logo para aproveitar a festa da menina.

- Nada de útil.

- Ah, ele também pediu que eu te agradecesse pelos reforços neste momento de crise.

- O quê? Mas que ref...

- Senhor! - uma jovem oficial de olhos puxados e pele cor de cobre interrompeu impetuosamente - Múltiplos buracos de minhoca no quadrante alfa, senhor! Sete, nove, treze... quinze naves classe B ou C!

- Mas que merda... Contato, rápido!

- Procurando... sim, contato visual, senhor! Mas...

- Mas o quê, criatura?

- É a insígnia do Leão Branco, senhor! São naves da Euroáfrica!

5.1.07

Boa Noite

Bonan Nokton

Os cinco saíram exaustos da longa reunião, na qual nada foi realmente descoberto e muito pouco foi efetivamente decidido. Um a um, deixaram a sala para seus aposentos, em busca de um merecido descanso para o corpo e alguma luz para o cérebro.

***

Carolina Lykos deixou-se cair sobre a cama como se pesasse toneladas. Impossível era deixar de pensar em como se sentia excluída entre as pessoas mais importantes da civilização humana atual. Quem era ela, afinal? A especialista em Relações Públicas andando por aí com a maior mente, o maior guerreiro, o maior diplomata e o líder destes três. Sentia-se mal. Tinha que fazer seu trabalho, é claro, e tinha plena consciência de que, apesar dele ser essencial, jamais teria glórias. Ossos do ofício.

Mas o que a incomodava mais não era ela se sentir inferiorizada, mas sim o fato dos demais (com exceção, talvez, do próprio onipresidente Reis) não fazerem questão alguma de deixá-la mais confortável. Suas opiniões sempre eram relegadas ao segundo plano, a palavra mal era passada a ela e raramente fazia parte de alguma decisão. Era sempre "o que acha, Carolina?", e antes que pudesse concluir qualquer raciocínio era interrompida pela voz de um dos grandes heróis da raça humana. Heróis. E ela era só uma qualquer.

Certamente, discordava de algumas das coisas ditas naquela sala, sabia que algumas das decisões tomadas afetariam a opinião pública de forma negativa e que algumas coisas postergadas eram emergência. Mas também, naquele momento, sua posição de inferioridade fazia com que ela pouco se lixasse. Afinal, pensando bem, dentro de poucos dias estariam todos mortos.

Ela rezou e dormiu.

***

O quarto do capitão era o mais confortável, mais até que o do onipresidente, já que, se alguém presente na nave tinha que descansar bem, essa pessoa era o capitão. Dentro da nave, ninguém era mais importante, ninguém tinha que tomar mais decisões e ninguém tinha mais responsabilidade sobre a vida de todos os demais tripulantes do que o capitão.

Na Oportunidade, o fardo do capitão Wülf era ainda mais pesado. Não era só a vida da tripulação que tinha sob suas asas, era a vida de um sistema solar inteiro, de toda raça humana.

Deitou-se, após dois comprimidos e um copo de uísque. Sonhou com a irmã, com ciborgues amebóides e com sangue, muito sangue. E sonhou com a realidade se curvando em ondas provenientes do infinito. Sonhou que era um com o universo. Mas foi só um sonho.

A irmã dele tem sonhos premonitórios, sabe? Mas ele não acredita nessas coisas.

***

Ao abrir automático da porta, a voz da secretária virtual do quarto anunciou:

- Boa noite, doutor. Há uma ligação urgente do doutor Hamud Ibn-Nur para o senhor em minha memória.

- Pode tocar.

Os sons eram indescritíveis. Horríveis, horripilantes. Estampavam dor, carne rasgada, bipes. A tela mostrava chuviscos às vezes interrompidos por luzes verdes ou vermelhas. O dr. Gustavo Silveira a tocou de novo, de novo e de novo. Suava frio só de pensar o que poderia haver de errado com o dr. Hamud, que ele pessoalmente tinha deixado responsável pela Espécie Tecnorgânica I em sua ausência.

Na quarta vez, conseguiu distinguir uma frase, dentre os gritos e chiados:

- Sexuada. Definitivamente sexuada.

Gustavo Silveira tentou acalmar-se e pensar direito. Tinha duas certezas: seu colega estava morto, e todos na estação de pesquisa corriam o mesmo perigo. O mais lógico seria ligar para lá e passar algumas instruções, averiguar o que aconteceu. Porém, sentou-se ao computador e passou a noite escrevendo sem parar. Quando finalmente deitou-se para ler o que havia escrito, não conseguiu entender nada.

Havia passado a noite inteira digitando uma seqüência interminável de zeros e uns.

***

- Olá Miguel.

- Ônix, minha bela Ônix, é um prazer incomensurável ouvir sua doce voz no final do dia.

- Eu sei, meu amor... fui programada para isso. Venha, deixa eu te fazer uma massagem.

- Ah, Ônix, só você para saber exatamente o que eu preciso.

- Me conta, querido, como foi a reunião?

- Minha cara, não quero te importunar com detalhes enfadonhos de uma reunião com pessoas chatas... aposto que podemos passar uma noite muito mais agradável sem isso.

- Ah, não fica irritado, gatão... você sabe que eu vou ficar quietinha enquanto você me falar tudinho... e eu sei que você também quer me contar... prometo que se você falar tudo eu te dou uma recompensa especial.

- Ai ai, o que seria de mim sem você... adoro o fato de você ser uma mulher virtual especialmente preparada para atender minhas vãs necessidades psico-fisiológicas.

- Ei sei, Miguel. Conta pra mim, conta.

Miguel contou tudo enquanto a consicência virtual Ônix balançava a cabeça, acariciava seus cabelos e massageava as costas. Dormiu feito um anjo após duas horas de sexo com a holografia sólida. Nem sonhou.

***

O onipresidente Reis entrou no quarto, colocou para ouvir uma canção relaxante e sonhou que era um ciclista.

***

São treze e quarenta e três no Complexo de Comunicação Interestelar da Euroáfrica. Como era de se esperar desta época do ano, a Euroáfrica subsaariana estava um inferno de quente. Claro que não era bem por isso que a Tenente-Coronel Vanya Byr usava trajes tão curtos. Ela se vestia exatamente assim nas convenções do partido no inverno congelado da Escandinávia.

- E então? – Karolus Guttenberg entrou na sala após a luz vermelha que indica "em uso" se apagou.

- Foi melhor do que imaginava. Tenho muito a relatar.

- Descobriu muita coisa?

- Descobri tudo. Reis está nas nossas mãos.

- E ele?

- Cassini? Acredita piamente que eu sou um programa de computador. Incrível não?

- Incrível.