14.12.06

Gato Preto

Nigra Kato

Se eu não fosse divorciado, eu ia ter que ouvir minha mulher dizendo “não disse?”. Mas também, não ia ter dançado tanto, bebido tanto e com certeza ia ter dormido mais cedo, e também me divertido bem menos. Ela era (era não porque não morreu de verdade, mas porque morreu pra mim) uma insuportável, é a cara dela dizer pra não atravessar a nebulosa com sono. Mas no fim das contas eu sou divorciado, dancei com umas vinte fêmeas, bebi todas e dormi só uma hora e meia antes de pegar a nebulosa. Eu juro que tomei pó de guaraná (dos transgênicos, o vendedor me garantiu que era tiro e queda), mas não funcionou direito, já que, se for ver, era o cansaço dos pés, a bebice do cérebro e a poeira nos olhos contra só uma cápsula de pó de guaraná. Tá, tá, duas, vai. De qualquer forma, não tiveram chance. Colisão, gerador de buraco-de-minhoca quebrado e pronto, fiquei lá, uns dois dias indo devagarzinho na direção de uma estrela.

Não tinha muito o que fazer, daí fiquei esperando o computador de bordo me responder qual estrela era. Psi do Capricórnio, terra de nolos.

Os nolograbianos, ou simplesmente nolos, foram os primeiros ETs a terem contato aberto com a humanidade, sei lá, uns duzentos anos atrás. Eles vieram de Delta do Capricórnio, ali do lado, de um planeta chamado Nolograb, que na língua deles quer dizer "Lar dos Homens" (claro que quando dizem "homens" estão falando deles mesmos), "nolo" é a palavra que significa "nós" (que na verdade é eles... ah, você entendeu) e "grab" significa "lar". Bom, quando encontraram o planeta Terra perdido no meio do universo, foi uma revolução: trouxeram tecnologia avançada, expandiram nossos conhecimentos, ensinaram pra gente xenologia, xenopolítica e astrografia, e até despertaram na gente um espírito de comunidade que fez a gente se juntar e aí surgiu a União. Mas a graça não é essa. A graça é que, por algum motivo, depois que contataram os terráqueos, aconteceu um monte de coisas que levou a civilização deles, de repente, à queda. Eles até têm um ditado: quando dizem que "tal fulano contatou os terráqueos", querem dizer que ele foi à falência, se deu mal na vida. Daí os nolos acreditam seriamente que os seres humanos dão azar.

Normalmente eu ia tentar evitar esse tipo de encontro. Sabe como é, se você é um gato preto não querer cruzar com um monte de gente que acha que você vai ferrar a vida deles. Mas a uma hora dessas, depois de uma viagem de bosta, um gerador de buraco-de-minhoca quebrado e dias flutuando que nem caramujo pelo espaço, você não liga pra essas coisas. Você quer parar no primeiro lugar e tomar uma cerveja (como se fosse ter bebida humana pra vender em alguma colônia de Nolograb, mas enfim...). Consegui pusar, daquele jeito, em um espaçoposto avançado em um planetóide na periferia do sistema. Tinha uma pá de luzes coloridas berrantes, porque a rocha ficava muito longe da estrela e por isso era muito escuro, naves velhas, envenenadas ou só esquisitas mesmo, o lugar meio que caindo aos pedaços... uma pocilga. Do jeito que eu gosto.

O bom de uma espelunca dessas é que não tem formalidade. Você chega pousando a nave, não tem que ficar pedindo autorização de pouso e tal. Você chega perto e alguém abre a escotilha para você, já que pra eles quanto mais gente, melhor. Isso evita um monte de situações chatas e, melhor ainda, aumenta a surpresa.

Na hora que eu cheguei, pensei: "bom, vou chegar já avisando que eu cheguei pra não assustar os caras". Aí eu entrei e a primeira coisa que eu fiz foi gritar:

- E aí, pessoal!

Mano, foi só eu fazer isso e olha o que aconteceu: um nolo que tava indo no banheiro deu de cara com a porta; a garçonete derrubou uma taça de um negócio verde-limão em cima de um cara que tava sentado, quebrou o copo e o cara ficou brilhando a noite inteira depois; um casal que ia se beijar bateu a cabeça; a caixa de som da banda estourou e o barman deixou cair óleo em cima do fogão, fazendo pegar fogo no troço que ele tava fazendo.

Depois dessa, pensei: "putz, agora vou ter que beber". Pedi lá o negócio mais forte que eles tinham (até agora não consigo pronunciar o nome daquela joça), e, mano, parecia que cada gole que eu dava, acontecia alguma coisa. Ou era nego começando briga porque bateu no outro sem querer, ou lustre caindo no meio da galera, comida voando pra lá e pra cá, mesas quebrando, panelas explodindo, gente caindo, gente morrendo, enfim, uma trexeira só. Demorou um pouco, eu já tinha passado do limite da memória e a parte seguinte eu só lembro uns fleches, só sei que eles se tocaram que tava acontecendo acidentes demais, e se ligaram que a culpa era minha.

A próxima coisa que eu lembro é que eu tava na nave, fugindo, e o computador não conseguia entender o que eu falava, e os caras tavam chegando, mas aí o da frente tropeçou e derrubou todo mundo, eu consegui digitar o comando no teclado (já tinha desistido de falar), a nave saiu e eu ainda consegui desviar de uns asteróides que tavam vindo na minha direção antes de apagar.

No dia seguinte aquela dor de cabeça básica, eu ligo o jornal e dá a notícia: o tal do boteco que eu tava ontem tinha sido destruído por uma chuva de meteoros que ninguém tinha previsto. Parece que uma "nave errante" tirou alguns asteróides da rota e por algum motivo bizarro eles não só colidiram com o lugar, mas também o explidiram.

É, os nolos acreditam que quando um de nós cruza o caminho deles eles têm azar. E naquele dia eu cruzei com o caminho de um monte.

29.11.06

Oportunidade

Ŝanco

Oportunidade. Não era a mais veloz nave da frota, nem era a mais moderna, ou ainda a mais equipada, mas era considerada a melhor. Diziam que era tudo graças ao capitão Gael Wülf que com competência e carisma marcantes, nunca havia perdido uma só batalha. Somente as pessoas mais íntimas de seu relacionamento podiam dizer que ele estava completamente tenso na reunião que se seguia em sua nave. Felizmente, ele não estava entre amigos.

- Esquisito.

Dr. Gustavo Silveira já havia conferido os cálculos milhares de vezes, e aquilo não fazia sentido. Um ponto, um minúsculo ponto crescia na região do Cinturão de Alfa Centauro, uma pequena sujeira gravitacional e estava crescendo.

- Muito, muito esquisito. Vejam senhores, não consigo explicar isso. Parece que está ficando mais denso... O tipo de evento que observamos parece uma impossibilidade física, até o momento.

- Exatamente por isso que você foi chamado, Dr. Gustavo. Somente um homem versado em tantas ciências poderia ter uma visão ampla o suficiente para tentar entender o que está acontecendo.

- E o que está acontecendo senhor Onipresidente?

- Ainda não sabemos senhor Cassini. O que temos é apenas esta imagem que uma plataforma de mineração conseguiu mandar, antes de sumir do radar. A imagem está muito borrada, mas parece ser algum tipo de frota em rota direta para o epicentro da anomalia.

- Mas, e os radares?

- Muito pouco, a leitura é estranha. É como se esta frota estivesse em todos as posições possíveis da trajetória, e ao mesmo tempo não está. Não sei explicar melhor.

- Hum... Tecnologia desconhecida, um destino onde as leis da física parecem estar desabando e você quer nos mandar para lá sozinhos e descobrir o que está acontecendo? Isso é absurdo! Capitão Wülf, não fique aí parado! Fale alguma coisa! Me ajude a botar um pouco de juízo no Onipresidente. Precisamos de uma frota, a maior que tivermos. Capitão? Está me ouvindo?

- Como? Ahn sim, não cabe a mim discutir a ordem de meu Onipresidente, mas realmente acho que ele está certo, senhor Cassini. Acho que devemos manter o “low profile”. Quanto menos pessoas melhor.

"Quanto menos pessoas melhor."

28.11.06

Breves Arquivos - Parte 01

Nelongaj Dosieroj - Parto 01


Arquivos da Escola Espacial Euroafricana NYP-3

Digite seu nome:
Yhaussef Mirmirguts

Digite o assunto:
História

Digite o tema específico:
Origem da União Humana

Computando... AGUARDE

Ano 2008
Ameaça iminente da Terceira Guerra Mundial. Povos da China apelam pelo poder. Os Estados Unidos perdem moralmente uma guerra contra o Oriente Médio. Morre de doença misteriosa o papa Bento XVII. Conclave dificílimo gera grandes polêmicas. Três cardeais morrem durante a votação. É eleito, depois de quatro meses, o nigeriano Francis Arinze, o primeiro papa negro da Igreja Católica. No salão dos papas, o último espaço para um rosto é completado.

Ano 2009
O Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, declara guerra com todos os países que se opuserem ao poder da supremacia americana. Diz ser o primeiro imperador da Terra. Opositores o julgam o anticristo. Dá-se início à triste Terceira Guerra Mundial. Forças opositoras de todo o mundo promovem ataques de todos os tipos à América do Norte. O Natal Atômico rege o terror. Milhares de mortos nos primeiros grandes ataques.

Ano 2010
Uma série de bombas nucleares sobre a Falha de San Andreas provoca o temido grande terremoto, aguardado para anos à frente. Uma nova ilha é criada. Sem motivos aparentes, a China dizima, com fortes ataques, o Vaticano e arredores. O fim da Igreja Católica tem seu início inesperado. Antigas escrituras proféticas confirmam todo o acontecimento. A nuvem radioativa não poupa ninguém pelo caminho.

Ano 2011
Fim da guerra. A América é derrotada. Inicia-se a Supremacia Amarela. É promovida a destruição de todos os arquivos e elementos que estejam escritos em língua inglesa. Imposto o mandarim em toda a Terra. Poucos países possuem tecnologia ainda em funcionamento. Do Brasil, surge a utilização de um combustível natural antipoluente, que é distribuído para todo o planeta. De lá, também, iniciam-se missões de manutenção e repovoamento das áreas perdidas da América do Norte. Há indícios de que uma nova potência desperta, após a chinesa.

***

Ano 2087
Uma doença contagiosa e mortal acaba praticamente com a população da China. Em dois meses, quase 1 bilhão de pessoas é morta. Os países vizinhos não encontram outra solução que murar por completo o continente, isolando-o do resto do planeta. Em menos de uma semana, a Nova Muralha da China é construída, com tecnologia avançada. Altura de trinta metros, largura de meio quilômetro. Quase esgotaram-se as reservas de ferro do planeta. Mas quem ficou de fora da grande prisão amarela sobreviveu. É decretado o fim da Supremacia Amarela. Os países da Terra entram em votação para decidir uma nova forma de poder geral do planeta. É celebrado o Natal da Liberdade.

Ano 2089
A instabilidade política e o temor de uma nova "supremacia" faz com que os antigos países se unam, formando quatro supra-regiões: América (formada pelos 3 continentes americanos, com domínio dos brasileiros), Euroáfrica (Europa e África, com domínio dos europeus do norte), Oriente Médio (formado pelos países do antigo Oriente Médio e do subcontinente indiano, com domínio dos indianos) e Extremo Oriente (leste e sudeste asiático e Oceania, com domínio dividido). Segue-se uma paz armada, com as quatro regiões competindo e cooperando ao mesmo tempo. Teme-se uma nova guerra.

Ano 2092
A ponto de quase estourar uma Quarta Guerra Mundial, o planeta Terra é visitado por nolograbianos (ou nolos), provenientes do planeta Nolograb, de Delta de Capricórnio. Pousam como amigos, oferecendo tecnologia e ajuda. Graças a todas as novas possibilidades, as quatro supra-regiões decidem juntar suas forças, formando a União Humana. Cada supra-região comandará, de cinco em cinco anos, por meio de votação mundial, as diretrizes e leis de poder da nova política. É instituído como língua oficial do planeta o esperanto. E são criados gigantescos hangares para construir espaçonaves com a nova tecnologia alienígena, e ajudar os planetas da estrela Delta de Capricórnio a estabelecer a paz no universo.

***

Mais perguntas?
Igreja Católica era algo importante, não? O que aconteceu depois? O que aconteceu com a religião? E como os nolograbianos encontraram a Terra?

Insira 40 créditos estudantis

Insira 40 créditos estudantis

Insira 40 créditos estudantis

Término da conexão.

21.11.06

Polícia e Ladrão

Polico kaj Ŝtelisto

- Sabe... estou com saudades do meu irmão. Faz tempo que ele não escreve.

Danielle e Laetitia conversavam descontraídas durante o jantar. Nestes últimos três anos, as duas desenvolveram uma relação intensa, quase como mãe e filha. Os cuidados e o carinho que Laetitia dedicava a Danielle era o mais próximo de um amor materno que a mais jovem já havia experimentado. “Laetitia significa ‘alegria’ em uma língua muito antiga”, disse ao se apresentar anos antes, e a cada dia Danelle concordava com o sentido do nome da amiga.

- Ah, Danielle, não fica assim não... você sabe que ele é ocupado, trabalhando na cosmonáutica e tal, sempre tendo que ir para planetas distantes, resolver problemas, salvar o sistema solar... essas coisas – Laetitia sorriu para Danielle, que retribuiu – garanto que entrará em contato assim que der.

- Eu sei... mas de repente senti saudades. Ele sempre quis ser cosmonauta, desde criança. Conhecer o universo, descobrir planetas. No dia que ele pegou a primeira nave foi o dia que eu...

- É... mas deixa isso para lá, OK? Vamos, é hora de ir para a cama, você teve um dia exaustivo. E nada de ficar lembrando dessas coisas antes de dormir.

***

Danielle e seu irmão brincando de Polícia e Ladrão. Ele sempre quer ser a polícia. Ele tem só oito anos mas Danielle sempre deixa. Ele tem até um uniforme de capitão espacial com um monte de medalhas. Eles correm para lá e para cá, o irmão tentando pegar Danielle, mas a Danielle é maior e mais rápida e ele nunca consegue pegar ela, só quando a Danielle deixa, e ela sempre deixa, e os dois sempre ficam felizes.

- JANTAAAR!

É a mamãe. Ela fez peixe com limão, o prato que a Danielle mais gosta. Mas o irmão não gosta de peixe, mesmo que faça bem para a memória. Eles correram para a casa, e Danielle chegou primeiro. Mas chegando lá, a luz estava apagada.

Seu irmão entrou depois, iluminando parcamente o local com a luz de fora, mas já era um adulto. O rosto grave, o olhar triste de quem conhece quase todo espaço conhecido mas sente saudade de casa. Caminhou lentamente em direção à irmã, e então um estrondo.

Danielle tinha medo, mas seu irmão se virou para protegê-la. Da porta destruída, vinha uma criatura. Não, não era uma criatura, era uma máquina. Quer dizer, uma criatura. Ou uma máquina. Uma criatura-máquina, enorme, guinchando. O irmão de Danielle atacou, e em um piscar de olhos foi feito em pedaços pela criatura/máquina.

***

- Não! Não! Não!

Danielle acordou gritando, logo Laetitia chegou.

- Acalme-se, Danielle, foi só um sonho.

- Não, não, preciso avisá-lo, preciso avisá-lo agora!

- Calma, menina, foi um sonho, você sabe que foi só um sonho. Aqui, beba isso.

Mas Danielle não bebeu. Preferiu pegar o copo e estilhaçá-lo na cabeça de Laetitia, deixando a enfermeira inconsciente.

- O hangar! Preciso chegar ao hangar!

As coisas finalmente ficaram claras para Danielle. Fazia tempo que os sonhos haviam sumido, mas os três anos na instituição não foram em vão. Agora ela tinha certeza que não estava louca.

***

Anos-luz dali, em seus aposentos na Oportunidade, o capitão Gael Wülf se lembrou de sua infância, de quando brincava de Polícia e Ladrão com a irmã, e deixou cair uma lágrima de seu rosto.

Ele sempre era polícia.

15.11.06

O Vácuo

La Vakuo

O vácuo...

Uma imensidão negra e sem horizontes, estrelas silenciosas passando no vazio, apenas o som da minha respiração e um “bip” periódico avisando que o traje está funcionando perfeitamente. É disso que eu preciso, sair andando pelo lado de fora da plataforma no espaço aberto. É como meditação zen para mim, adeus preocupações. Apenas eu e meus pensamentos batendo um papinho e pondo a sanidade em dia.

Bip

Zarom parece tão pequena daqui, uma pequena bola branco-azulada. Tão calma e tão serena... Nem parece aquele inferno de vulcões de hidrogênio líquido. Não é um lugar que alguém em sã consciência gostaria de visitar, mas a União precisa de combustível. Pelo menos foi o que disseram para nós, quando nos enfiaram nessa plataforma de extração. O trabalho é duro, sem diversão nenhuma e extremamente perigoso mas o soldo é muito bom além abater uns bons quatro anos de serviço militar pela insalubridade. Arriscado? Sem dúvida, mas um bom negócio.

Bip

Dou graças à tripulação que peguei todos honestos e amigos. Formamos uma família aqui nesses últimos trinta meses, o que é muita sorte levando em consideração que a última missão que veio aqui acabou em revolta, motim, loucura e uma queda até Zarom. Ainda pode-se ver a cratera negra, maculando a alvura da superfície do planetóide. Mas não é para baixo que eu gosto de olhar e sim para cima, para as estrelas além. Nada como sentar na fuselagem externa da plataforma e ver o universo passar.

Bip

Mas ei! O que é aquilo?

- Lester? Lester?

- Na escuta, qual o galho Eric?

- Tem alguma coisa vindo pra cá!

- Hum... Não consta nada nos radares... O que você está vendo?

- Sei lá! É grande e tá vindo muito rápido.

- É um asteróide? Algum cometa não catalogado?

- N-não, parece ser um tipo de nave. Nossa é muito grande e eu acho que eles não tão vendo a gente...

- Nave? Impossível, essa rota é restrita e nenh...

- É mais de um! É mais de um! Não consigo contar quantos, é muito confuso!

- Mas o radar...

- Foda-se o radar! Olha pela escotilha idota! Como você não consegue ver essa merda? Tá aí pra quem quiser ver!

- Meu Deus! Eu tou vendo!

- Então? Tira a gente daqui.

- Não dá, os motores estão frios, vou precisar de no mínimo umas 3 horas. Fora que a ativação de emerg...SHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH

- O quê? Lester? Lester?

Droga, era o que faltava. Uma falha elétrica justo agora, estamos mortos! Mas que diabo de nave é aquela? A velocidade dela é impossível. Vamos bater.

Perto,

Perto,

Perto,

Mais perto.

O casco da plataforma está tremendo. Agh! O calor dos propulsores. Uma luz branca invade meus olhos, impossível de não ver, mesmo de olhos fechados. Está tudo chacoalhando, assoviando, pedaços de coisas se chocando com a minha roupa espacial

Então o silêncio novamente, quando finalmente volto a enxergar tento me localizar... Lá está Zarom, perto demais, mau sinal. E onde está a nossa plataforma? Tento contato. Nada, tudo se foi. Parece que realmente estou sozinho aqui, flutuando a esmo no meio do vácuo espacial, eu deveria estar com medo agora mas não estou. Tudo está tão calmo, silencioso e bonito...

Sabe de uma coisa? Faz uns quarenta minutos que não ouço um “bip”.

14.11.06

A Onda

La Ondo

Um soco bem no meio da cara.

- Eu acreditei em você, Capitão! Acreditei em tudo que você tinha dito!

Não houve resposta.

O fato do tenente Charles Beckings da Oportunidade estar em pé, de punhos cerrados, e seu capitão Gael Wülf estar no chão, se levantando enquanto limpava o sangue em sua boca, era suficiente para deixar o tenente preso por tempo indeterminado por insubordinação. Mas nada disso tinha importânica. Não quando os dois estavam sozinhos, na beirada de um penhasco, respirando o fétido e revolto ar da Colônia Sírio 1. Ainda menos quando a um deles o paraíso havia sido prometido e negado pelo outro.

- Você prometeu, capitão. Você tinha me falado da Onda, tinha me falado que era como sentir todo o universo, tinha me falado de tudo isso. Eu lutei ao seu lado, eu segui suas ordens, tudo isso para nada!

- Você prestou um excelente serviço para a União.

- Dane-se a União! Eu fiz isso por você, capitão! Porque acreditei nas merdas que você me falou! Você foi meu guia, capitão, e eu te segui, e ia seguir até o inferno!

- E agora vai me mandar para lá, é isso?

- Você tirou parte da minha vida, capitão, então eu vou tirar a sua.

O vento uivava com violência, movendo as nuvens acinzentadas pelo céu cor de musgo do crepúsculo da colônia e calando a voz turbulenta do tenente Beckings. Se ele não podia fazer sentir sua ira por meio da voz, ele então o faria pelos punhos. Que o mentiroso capitão beijasse novamente a rocha negra e fria do solo da colina.

***

Uma lembrança.

O jovem e proeminente imediato Wülf conta uma história, de sobre como ele passou meses preso em um calabouço sujo em um satélite lank durante a Guerra das Cobaias, e sobre a história que o alguilês na cela da frente contou a ele, a história das Ondas.

- ... aí o alguilês olhou pra mim com seus dois pares de olhos refletindo a minha cara barbada e suja. "De tempos em tempos", ele disse, com aquela voz esganiçada que vocês conhecem, mas sem a arrogância que vocês esperariam, "a realidade se dobra. Ninguém sabe ao certo porque ou a partir de que ponto, mas ela se dobra e se espalha por todo o universo como uma onda, como se o universo inteiro fosse uma poça d'água e caísse uma gota bem no meio. Agora, imagina uma Onda de realidade do tamanho do universo, o que ela é capaz de fazer com um ser". "Ah, tá", eu disse, "olha só, não quero duvidar dessa história toda e tal, mas se houvesse mesmo uma 'dobra na realidade', você não acha que todo mundo ia ser capaz de senti-la? Quer dizer, ninguém nunca tinha me falado disso até eu ficar preso aqui com você". Aí ele disse "Ninguém ou nenhum terráqueo? Porque meu caro, em Alguil e em centenas de outros mundos essa história é real e é disso que vivem muitos sacerdotes de muitas religiões. Aposto que na Terra tem isso também, mas como outro nome". Bom, aí eu fiquei pensando naquilo por um tempo, mas cheguei à conclusão que era viagem dele. Uns dias depois, a cavalaria chegou. Nosso exército entrou chutando a porta e liberou todo mundo. Eu estava correndo para a nave de resgate, só que, do nada, apaguei. Acordei horas depois, estava em uma câmara escondida junto com o alguilês. Quando fui perguntar para ele o que tinha acontecido, ele só respondeu, "Aguarde, terráqueo. Vou te levar para surfar a Onda".

- Era verdade então? - alguém no meio do pequeno grupo que ouvia ao imediato perguntou.

- Meu amigo, não só era verdade, como foi a maior experiência pela qual já passei em toda minha vida. Foi como comungar com o universo, foi como descobrir o significado de tudo e saber as respostas para todas as perguntas. E então, acabou.

Daquela conversa, metade das pessoas saíram revoltadas, já que estavam esperando uma história de guerra e de repente Wülff chegou com esse papo de religião. A outra metade ficou lá ouvindo por graça, achando divertido e interessante. Mas só uma realmente prestou atenção e entendeu o que Wülf dizia.

- Senhor... gostaria de saber mais sobre esta Onda... e sobre como eu posso fazer para surfá-la como o senhor.

- Pois bem, sargento. Me acompanhe, e eu te mostrarei tudo o que precisará saber. Qual é seu nome mesmo?

- Sargento Beckings, senhor. Sargento Charles Beckings.

***

Os punhos do tenente estavam cerrados com ódio, mas alguém que o observasse se sentiria mais ameaçado por seus olhos. Bem abertos, tornando a área branca bem maior do que normalmente seria, fazia com que a íris acinzentada típica da ilha de onde vinha se perdesse, evidenciando ainda as pequenas pupilas que pareciam capazes de fuzilar um homem. Tirou a pistola do coldre, sob o olhar atento do capitão a seus pés. Apontou-a para a cabeça. Os olhos miravam, o dedo tremia no gatilho.

E então jogou-a no chão.

- Não - disse Beckings - Vou te matar com as próprias mãos, safado.

Wülff sabia muito bem que Beckings era mesmo capaz de fazer isso. Não era só sua força, era seu vasto conhecimento sobre o assunto. O capitão já tinha visto seu tenente matar com os punhos antes. Várias vezes, todas sob seu comando, todas a serviço da sua nave, a Oportunidade.

Oportunidade. Era exatamente disso que o capitão precisava naquela hora. Contra todas as probabilidades, contra um inimigo mais forte e mais motivado. Um momento, uma oportunidade. Um toque no comunicador.

- Tenente Beckings! CCS chamando Tenente Charles Beckings, da nave Oportunidade, câmbio!

Por uma fração de segundo, os olhos de Beckings saíram de sobre Wülff e se voltaram para o comunicador em sua cintura. Tempo suficiente para Wülff mostrar porque ele era o capitão, e Beckings o subalterno.

Com um giro veloz no chão duro, Wülff pegou a pistola jogada no chão por seu pretenso executor, e antes que o adversário pudesse pensar em reagir, levou um tiro no joelho esquerdo, caindo no chão. Enquanto Wülff se levantava lentamente, sentindo dores por todo o corpo e mantendo a arma apontando para Beckings, este jazia agachado no solo rochoso. Seus olhos ainda mais raivosos derramavam lágrimas ácidas de ira e frustração, seus dentes cerrados não continham uma espumosa saliva de cão raivoso.

- Atenção, Tenente Charles Beckings, o Comando Colonial de Sírio requer resposta imediata! Responda, Tenente Beckings, câmbio!

- Três meses, Charles. A próxima Onda vem em fevereiro, e você a perdeu por três meses. Era tudo verdade. A experiência da sua vida. A oportunidade que você perdeu.

Antes que pudesse se arrepender, Beckings estava morto.

- Tenente Charles Beckings, este á seu último aviso, retorne a chamada ao CCS imediatamente, câmbio!

- Aqui é o Capitão Gael Wülff da nave Oportunidade, falando de Sírio 1. Infelizmente, o Tenente Beckings pereceu em combate com um grupo de piratas, o qual destruiu também nosso veículo. Enviando sinal de coordenadas para resgate. Câmbio final.

***

Naves. Muitas naves. Insígnias (e intenções) desconhecidas. Enquanto observava pelo visor da sala de planejamento da Oportunidade as naves alienígenas que se aproximavam do cinturão de asteróides da alfa do Centauro, o Capitão Wülff pensava em datas.

Uma semana atrás, conduzira um diplomata à uma negociação em Aduuhr.

Dali a alguns dias, virá uma nova Onda.

E três meses atrás, matara o Tenente Charles Beckings, o qual queria matá-lo com as próprias mãos. Mas o capitão usou a pistola mesmo.

13.11.06

Tecnorgânica I

Teknorganika I

- Uma verdadeira maravilha da natureza! Adoraria conhecer o planeta de origem dessa forma de vida. Apaixonante!

O Dr. Gustavo Silveira parecia hipnotizado pela beleza da criatura em sua mesa de dessecação. Passava os dedos trêmulos entre seus ralos cabelos brancos, afagava a barba volumosa, andava de um lado para o outro, mal contendo a excitação dessa nova descoberta.

- Dr. Silveira, o senhor realmente acredita que essa criatura é natural? Fruto da evolução?

- Sim, mas é claro! – respondeu em tom efusivo – Veja como as partes mecânica e orgânica se unem de forma "natural", crescem em conjunto.

Nesse momento o intercomunicador tocou. Era o general Berguer, responsável pelas forças-tarefa de defesa interplanetária.

- Gustavo, tenho noticias que devem agradá-lo bastante. Venha ao meu gabinete.

***

O gabinete do general Alfonce Berguer era como Gustavo esperava que fosse: espartano. O globo de iluminação pairava sobre a mesa simples de metal, iluminado os holomapas deste quadrante do universo. Alfonce observava os mapas em calma reflexão, anotando coordenadas em seu computador de mão.

- Sente-se Silveira – disse sem olhar para Gustavo – falo com você em um minuto.

Gustavo observou Alfonce em suas analises e ficou satisfeito com o próprio trabalho.

"Eu lhe dei um grande cérebro Alfonce. Você continua sendo minha obra-prima".

- Gustavo, tenho que falar com você sobre a criatura que está pesquisando no momento. Gostaria de um relatório completo.

- Claro, general Berguer. É um prazer falar sobre aquela maravilha. Infelizmente não temos muitos dados concretos. A criatura – chamamos de espécie tecnogânica I – é um misto de máquina e organismo vivo. Seu cérebro é formado por chips e neurônios semelhantes aos de outras espécies humanóides. Embora 50% do espécime seja mecânica, sua formação é orgânica. Cabos, chips, placas, tubulação... Tudo!

- Alguma idéia de como a criatura se reproduz?

- Ainda não. Eu acredito que seja através de reprodução sexual. Meus colegas acreditam que seja de forma assexuada, que eles são construídos por uma inteligência central, com matéria orgânica recolhida do ambiente. Ainda estou procurando o órgão sexual da criatura que encontramos. Espero uma resposta positiva em alguns dias.

- Espero que você esteja certo!

Berguer tocou a tela do intercom. Brenda, sua secretária, apareceu na tela.

- Entrarei em uma reunião classificação Alpha.

- Sim senhor. – respondeu desligando.

- Gustavo, nada do que for dito nessa sala deve sair daqui.

- Claro general.

- Uma frota alienígena aproxima-se do cinturão de Alfa Centauro. Quero que você analise as imagens que temos.

***

Gustavo saiu do gabinete de Berguer com o medo estampado em sua face.

Tinha apenas alguns dias para descobrir tudo o que pudesse sobre a criatura em seu laboratório.

Se sua teoria estivesse certa, nada impediria um primeiro contato pacifico. As possibilidades no encontro com um organismo biomecanoide traria centenas de anos em evolução para ciência humana, principalmente em sua área, biocibernética.

Mas e se estivesse errado? E se a tecnorgânica I for uma espécie viral, consumindo planetas em uma linha de montagem reprodutiva?

Gustavo ligou para sua esposa tentando esconder a preocupação em sua voz.

- Lesly, meu amor, prepare minhas malas para uma viagem longa. Devo acompanhar o Sr. Miguel Cassini em uma visita diplomática.

10.11.06

Desabafo de Uhrdjago

Uhrdjago Konfeso

Os desertos do Universo. Eu mataria para não morar num planeta-deserto. Não pense que o "deserto" aqui é de vazio. Pelo contrário. É cheio de areia. E insetos. E alienígenas que devoram insetos. E eu.

Estou aqui há mais tempo do que mereceria. Abandono. Fui enviado numa missão de paz em Saharaderum, numa pequena tropa. Guerra civil. Sinthadernuuns contra Saharadernuuns. O bem e o mal. Do ponto de vista deles, é claro. Todos são maus, aqui. Isto me lembra a velha história da Terra, uma tal de Revogação Francesca, Revotação Francesa, Revolução Fruteza, enfim, uma merda. Uns cortando as cabeças dos outros, quando atingiam o poder. Missão de paz pra quê? Deixem que se matem! O que importa ser o maior exportador de escaravelhos bipaquidermes, se a única função deles em todos os outros planetas é uma alternativa ao bom e velho estrume orgânico? Estrume tem em todo o Universo! Não precisamos mais importar insetos cagões há décadas. Temos clones de pré-históricos brachiosauros para tal. Que se matem!

Ah, eu mataria por comida da Terra! E já matei, aliás. Meu comandante. Estava à beira da morte, mesmo. Perdera uma perna na última investida do inimigo. Não me lembro qual dos dois inimigos. Mas era um deles, com certeza. Insetos não usam cimitarras de elemento 2387. Cortei sua garganta para preservar a carne quente e macia por mais uma hora. Mas esta comida não é tão boa. Preferia os bovinos, ou suínos.

Tudo correu bem até os malditos Saharadernuuns comerem todas as baterias que restavam de nosso comunicador extra-universal. Malditos. Era a única coisa que restava para eu me sentir realmente abandonado neste planetinha. E nada de reforços. E nada de resgate. Fomos esquecidos, aqui. Como iríamos imaginar que hiperníquel-
pentacádmio era uma exótica iguaria nesta bola de areia?

Mulheres terrestres. Eu mataria por uma mulher terrestre. Dezessete anos, três meses, cinco dias e vinte e duas horas sem sentir o acolhedor calor das coxas femininas. As mulheres, isto é, as fêmeas daqui são péssimas amantes. Talvez para um Sinthadernuum aquela coisa seja excitante. Mas para mim, é como praticar zoofilia com uma iguana de três metros. É, é com o que elas se parecem. Iguanas. Coloridas, frias e escamosas iguanas. Me senti um necrófilo, na primeira vez. E na segunda. E em todas as centenas de outras vezes. Até que resolvi aceitar a minha condição de celibatário.

Nem sei se existe ainda a União Humana. Aliás, nem sei se a Euroáfrica ainda está no poder. Não sei nada, mais. É por isso que desisto. É por isso que desabafo. Cansei de ser o único humano neste lugar horrível. Cansei de comer insetos. Cansei de contar quantas placas de titânio enriquecido que compõem esta lata-velha que eu chamo de nave. Cansei deste povinho gelado com cara de lagartixa. Cansei.

Esta é a minha última gravação, AIBT-9000. Vou encerrar as transmissões, e todos os sinais de socorro para o espaço. Lançarei você para a posteridade. Você flutuará pelo espaço sideral até que algum idiota que fale nossa língua o encontre. Daí ele saberá a verdade. Daí, ele descobrirá o abandono do onipresidente da Euroáfrica para com nosso pequeno grupo de paz. Vá! Vá para o espaço, criança! Vá! Contarei até mil, e direi adeus.


***


- Senhor! Senhor! Percebi algo estranho no quadrante extremo-nornoroeste da galáxia conhecida. É um sinal fraco, mas parece para mim uma grande explosão atômica.

- Tem razão, Fhuster. Aproxime o neoradar.

- Veja, senhor! Ali, se não me engano, era um planeta-deserto, não?

- Saharaderum. Havia uma guerra civil, lá, há uns bons anos. Foi antes do onipresidente americano assumir o poder. Todos os arquivos do governo anterior foram destruídos, e perdemos o sinal de diversas missões de paz espalhadas pelo Universo. Não me lembro se houve alguma missão para conter estes povos em Saharaderum. Bom, mas se houve, agora tenho a impressão de que eles não lutarão mais, nem pedirão socorro...

- Notificamos a perda, senhor?

- Claro, Fhuster. Mas coloque abaixo da pilha de prioridades.

7.11.06

Confusões

Konfuzoj

O céu estava escuro e frio, a chuva começava a cair no cemitério de São Zozimus.

- Sabe, você não devia ter feito aquilo com o Günna.

- Foram apenas negócios, Anja. Para negociar, a gente precisa de respeito, confiabilidade... O Günna estava passando a perna em meio mundo. Isso não era bom para mim e nem para os meus clientes.

- Mas você trabalha para a União, não? Você devia ter pedido a abertura de uma auditoria na instância de relações extra-exteriores e aguardado a posi..

- Se eu tivesse feito isso, nós estaríamos no meu velório, e não no dele.

- Nós? Ou só eu?

- Você me entendeu.

Até chegarmos em casa, Anja não falou mais nenhuma palavra. Ela sempre me dava um gelo quando eu precisava “resolver” alguns negócios à moda antiga. Era uma idealista, como nossos amigos a classificavam, não suportava injustiças, guerras, corrupção ou violência, mas no final ela sempre fazia as pazes comigo. Como resistir à paixão que existia entre nós? Se bem que algo me dizia que dessa vez seria diferente. Afinal, matar o marido de alguém não é fácil de se perdoar, ou é?

***

Vocês ainda se lembram da pulga que eu comentei antes? Pois é, uma hora ela aparece. Infelizmente ela era do tamanho de um caranguejo tarmukiano. Pelo menos foi o que começou a parecer quando ouvi os “campos” das janelas serem desligados. Ótimo, pensei, estou pelado, tomando banho e desarmado, não existe maneira melhor de ser emboscado (para os emboscadores, pelo menos).

- Cassini? Miguel Cassini? – Ecoou uma voz grossa pelo banheiro, seguida por dois típicos agentes, com seus óculos escuros, sobretudos e pontos na orelha.

- Sim, eu apertaria a mão de vocês, mas no momento estou ocupado escondendo as minhas “partes”.

- O Onipresidente precisa falar com você, senhor, imediatamente.

- Claro, deixe apenas eu me vestir...

- Ele disse IMEDIATAMENTE!

- Mas eu ainda estou nu! Você não espera que...

Crás! Uma bela porrada na minha nuca, depois a escuridão. Malditos andróides e suas ordens literais.

***

- Boa noite, Cassini, como foi de viagem?

Agh! Luz, luz forte! O cheiro de ar ionizado... Droga, estou em uma nave! Droga!

- Onipresidente Ramirez? Vim assim que me informaram que queria falar comigo, literalmente.

- Sim, fiquei sabendo... Desculpe pelos andróides, última novidade em cérebros positrônicos cognitivos. Muito bom, mas cheio de falhas.

- Algumas.

- Bem, vamos acabar com as formalidades, ok? – A pulga! A pulga surgindo! – Pois bem, o setor do anel externo acaba de informar que uma frota desconhecida de espaçonaves de tamanho abissal está a caminho do sistema de Alfa do Centauro, e adivinha qual o suposto destino?

- Ahn... Não tenho idéia, senhor – Por favor, não o cinturão de asteróides, não o cinturão de asteróides, não o cinturão de asteróides, não o cinturão de asteróides...

- O cinturão de asteróides – Droga! - Muito interessante, não?

- Alguma ligação com Aduuhr, senhor?

- Ainda não sabemos, oficialmente Aduuhr se mostra tão surpreso como nós.

- Imagino que a União não me trouxe aqui só para me informar da situação, não?

- Claro que não! Você é o nosso melhor negociador, um diplomata, por assim dizer. Quero que você bata na porta desses desconhecidos e descubra o que eles querem aqui.

- Eu, senhor? Uma operação dessas não devia ser comandada por militares?

- Se você quiser, posso te colocar na lista de convocados para a força da União.

31.10.06

Negociação em Aduuhr

Intertraktado en Aduuhr

A enorme esfera branca amarelada ocupando grande parte do horizonte, acompanhada de uma menor, acinzentada, no vasto fundo negro, indicavam que aquela doca era sem dúvida uma das melhores da base. A esfera maior era Aduuhr; a menor, uma de suas duas luas, que eu não consegui até agora lembrar o nome.

Sabe, Aduuhr, em aduuhrano, significa “areia”. Isso porque, a maior parte da superfície seca do planeta é desértica. Desta forma, quase tudo o que a gente vê quando olha para ele é um branco amarelado, tão claro que, quando saímos da Oportunidade (esse é o nome da nossa nave), ofuscou os meus olhos e os do oficial que tinha ficado encarregado da minha segurança. O planeta reflete tanta luz que na doca onde a gente tinha estacionado não tinha nem luz artificial. Dá para imaginar que, do mesmo jeito que Yuri Gagarin disse “a Terra é azul”, seu correspondente aduuhrano disse “Aduuhr é branca amarelada”, isso, claro, se ele não tiver dito algo como “caramba, como meus olhos dóem!”.

Enfim, Aduuhr tem areia a dar com pau. Claro, como todo planeta, tem gelo nos pólos, florestinhas e tal, mas tem muita, muita areia. Nem oceanos o planeta tem direito, um ali, outro aqui, já que é tão perto do sol deles que a água vira vapor fácil, fácil, o que me deixou bastante grato por eles terem optado por realizar o encontro numa das luas. Enfim, com isso, é muito justo os nativos chamarem seu mundo de “Areia”, o que me fez pensar se a Terra, com seus dois terços de água na superfície, não devia se chamar “Água” ao invés de Terra. Claro, só pensei nisso porque esse era o motivo pelo qual eu estava lá.

Na aula de xenologia, na pós-graduação, a gente aprendeu que há três coisas importantes a se saber sobre os aduuhranos: um, eles fedem; dois, eles são a raça extraterrestre inteligente mais resistente que a gente conhece (era de se esperar isso de camelos bípedes); e três, e, neste caso, mais importante, eles são excelentes negociadores, daqueles que sempre te deixam com a pulga atrás da orelha ou com a impressão de que saiu perdendo. Freqüentemente, com as duas. E foi por isso que eu fui escolhido pessoalmente pelo onipresidente para este trabalho. Afinal, eu sou Miguel Cassini, o melhor negociador do sistema solar.

Enquanto o comitê de recepção aduuhrano escoltava a mim e ao oficial até nossos alojamentos, e depois, durante toda noite (figurativamente falando, claro... nem vou me alongar falando que “dia” e “noite” são conceitos totalmente relativos quando se está fora de casa), só conseguia pensar uma coisa: “não o Caahriin, por favor, não o Caahriin”. Dia seguinte, na sala de conferência, é lógico, Caahriin estava sentado à minha frente.

Abuuhud Caahriin é o melhor negociador aduuhrano; os aduuhranos são os melhores negociadores deste setor da galáxia. Logo... bom, basta dizer que uma vez ele fez um sshzaasita sair chorando da sala de negociações após fazê-lo trocar um comboio inteiro de espaçonaves por um ovo perdido. Você acha pouco? Você já viu um sshzaasita chorar? Sabe por quê? Porque o organismo deles não produz lágrimas. Eu estava lá, e vi tudinho.

Bom, então estava eu lá, sentadinho, encarando os negros olhos de Caahriin, ele encarando os meus. Sua pelagem estava já curta e acinzentada, sua pele já enrugada, mas o aduuhrano continuava parecendo uma rocha impenetrável. Ah, e ele fedia.

- Água suficiente para dez anos, em troca de carbo-hássio para cinco anos. É um acordo excelente, não há como negar.

- Seria, se dez anos em Aduuhr não equivalessem a quatro anos terrestres. - (ele entendeu a minha pegadinha) - Por favor, Cassini, não sou idiota. E antes de você me falar sobre relatividade e mais um monte de besteira para tentar me enrolar, deixa só eu te esclarecer dois pontos: o primeiro é que nós somos a única fonte de carbo-hássio em abundância no universo – (olha o exagero... ele devia ter dito “dentre as raças com as quais vocês têm contato amistoso”) - e o segundo é que vocês não são a única fonte de água. Nada impede que a gente comece a comprar água dos bloughs.

- A não ser o fato de eles serem xenófobos belicosos em guerra com metade da galáxia – (e eu descobri a pegadinha dele) – O que você sugere?

- Você está com sorte hoje, Cassini, temos uma proposta que você vai descobrir ser irrecusável. Cinco anos terrestres de combustível em troca de apenas dois anos terrestres de água... e vocês nos concedem a exploração de metade do cinturão de asteróides entre o terceiro e o quarto planeta de Alfa do Centauro.

- O quê?

- É isso mesmo. Te dou até amanhã para pensar.

Parecia, realmente, tentador, como trocar ouro por palha. Por via das dúvidas, falei com o planetólogo da tripulação, que confirmou minha suspeita de que os asteróides não passavam de “uma porção de rocha fria e sem graça”. Por via das dúvidas, procurei mais quatro planetólogos de outras naves próximas, e todos eles disseram o mesmo. Era uma pechincha. No dia seguinte, então, fechei o acordo.

Tudo lindo, tudo mais que lindo. Conseguimos o combustível, gastamos pouco da nossa reserva de água, e ainda podíamos jantar ouvindo a linda (ainda que estranha) música aduuhrana. Caahriin, de bom humor como nunca havia visto antes, ainda me deu de presente uns dez quilos de uma iguaria típica muito apreciada por eles (fiquei sem graça de falar que odiava aquilo. Afinal, um presente desses é que nem um cubano: ainda que você não fume, você não recusa). Mas lembram do que eu tinha falado que aprendi sobre os aduuhranos na aula de xenologia? A resistência física, o fedor e a pulga atrás da orelha? Bom, a primeira eu não ia ter como comprovar naquela viagem, mas a segunda era evidente. Bem como a terceira.

Saímos de lá com um acordo fechado, um monte de combustível a preço de banana e uma baita pulga do tamanho de um elefante na parte de trás da orelha. Trocamos um monte do precioso carbo-hássio pela metade de um monte de pedras flutuando num sistema planetário vizinho. Bastou uma ligação para o onipresidente. Ele não entendeu nada, mas por via das dúvidas aumentou em duzentos por cento a verba destinada à exploração da outra metade do monte de pedras.

***

Günna, de boca cheia, ria com gosto.

- Muito boa, Miguel! E ainda nos conseguiu um belo churrasco de... como é mesmo o nome desse troço aqui?

- Não sei... não sei nem como vocês conseguem comer isso, é nojento!

- Você não sabe o que diz, meu caro! Sabe, nós jamais deveríamos ter feito aquilo com vocês lá em Sírio. Fico feliz que tenha nos procurado e oferecido este jantar de reconciliação. Fomos tão estúpidos.

- Não tem problema, meu velho, isso foi há muito tempo. Águas passadas...

- Não fazem verão, é isso aí! Mas olha, voltando ao assunto da comida... você tem certeza de que não quer, está muito boa mesmo!

- Já disse, Günna, não como esse troço aí. É nojento.

- Nojento? Você já experimentou para saber?

- Claro que não. Isso aí é ótimo para os aduuhranos, mas é tóxico para nós, humanos. Adeus, Günna.